Tuesday, March 07, 2006

Peça de Teatro

Sugestões para a Montagem: Não Montar
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Primeira Cena
[Marcação: Menino sentado de trás da mesa, Pequeno Nietzsche entrando pela porta e parando em pé, em diagonal ao Menino]
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As E-vidências começavam com uma empolgação não usual por parte daquele Menino. Empolgação, imaginem só, digirida a mim:
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Menino: Vamos ao teatro no fim de semana Pequeno ?
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Há pessoas que possuem uma vivência diferente da nossa! Por exemplo, não imaginava que a vivência do Menino-em-Questão se prestasse a perder espaço de seu fim de semana comigo. Sempre imaginara, talvez por complexo bobo, que a vivência d´Ele comportava coisas muito mais interessantes do que eu, principalmente de fins de semana, em que o lazer é imperativo, e há a necessidade de nos sentirmos especiais, de irmos a lugares especiais, acompanhados por pessoas especiais. Assim, é possível, segunda-feira, voltar à rotina com a sensação de dever cumprido e ego intacto.
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Porém, no calor do momento, concentrado na vida e em transparecer de forma natural e despreocupada aquilo que no fundo é premeditado, eu não notara tal E-vidência.
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Segunda Cena
[Marcação: Menino sentado na bicicleta encostada na parede, Pequeno Nietzsche na cadeira giratória do computador]
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Menino: Você joga bola?
P. Nietzsche: Não, é uma atividade muito máscula para mim.
Menino: (risada)
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E novamente eu deixava passar desapercebida aquela empolgação um pouco exagerada, outra E-vidência que saía d´Ele mas que eu, ainda muito concentrado na atuação cotidiana, não conseguia ver. Talvez se o Menino soubesse que naquele dia exalava tantas provas de sua condição, optaria por não sair de casa, mas ocorria que, descuidado, fora tentar levar um dia normal e acabara espalhando as pistas de sua fragilidade até então muito bem escondida.
A risada era franca, sem preconceitos, direta. O olhar era caloroso como não costuma ser quando se recebe uma resposta verdadeira.
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Terceira Cena
[Marcação: Pequeno Nietzsche sentado na carteira assistindo à primeira aula, Menino em algum lugar que não ali]
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Ainda desatento com relação ao Menino e muito concentrado em "minha" primeira aula, "meu" desenvolvimento intelectual e "minha" professora, só fui perceber a ausência do Menino vários minutos depois de começada a aula, e quando a percebi, achara curioso o fato de que Ele sempre fora disciplinado e metódico, perder a primeira aula de uma matéria nova provavelmente seria algo imcabível em seus planos para aquela semana cheia de primeiras coisas. Porém, ali comigo Ele não estava e eu finalmente começava a sair do foco e observar as coisas do escuro. O foco vazio e eu observando a platéia do escuro, a luz do spot não me ofuscava mais, algo era diferente no dia d´Ele e eu começava a notar.
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Quando ele chegou no meio da aula, estava mais expansivo e "acelerado" (para usar palavras alheias e confiáveis) do que de costume, e seu jeito já desenvolto naturalmente tornava-se agora um chamariz! Curiosamente não havia carteira sobrando para Ele se sentar, não havia lugar para Ele naquela sala, não havia espaço para Ele naquele dia...
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Lidou com o fato de forma rápida:
Menino: Aaahn, não tem carteira sobrando!
(saiu da sala e voltou com uma)
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Sentou longe de mim, encostado na parede, porém em um local visível.
Olhares trocados de longe e, ao término da aula, olhares trocados de perto. Seus olhos estavam vermelhos. (E-vidência)
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Quarta Cena
[Marcação: Pequeno Nietzsche no corredor movimentado do xerox em busca das próximas leituras, Menino chegando desajeitado na outra ponta do corredor]
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Chegou, encostou-se na parede e disse:
Menino: E aí? Vamos tomar uma breja?
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Outro convite empolgado. Lembrei de meu pai (alcoólatra). E foi devido à experiência anterior com meu pai que pude compreender.
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Quando meus pais se separaram, eu e meu irmão fomos morar com a minha mãe no apartamento e meu pai ficou morando sozinho na casa. Pôde finalmente dar vazão aos seus empreendimentos sem obstáculos de antes (filhos e esposa). O projeto era E-conomizar, é E-vidente!
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Papai poderia agora, quando saísse de casa de carro, sem que ninguém mais reclamasse, abrir o portão eletrônico e não o fechar até ter voltado, deixar a casa escancarada, pois abrir e fechar o portão é mais econômico do que abrir e fechar e abrir e fechar.
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Papai poderia agora desligar a geladeira durante a madrugada, e ligá-la apenas pela manhã. Seis horas a menos de geladeira ligada gastando energia, mais econômico.
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Eu ainda voltara à casa de meu pai para pedir dinheiro várias vezes, ele sempre reclamava de dinheiro. Nunca dava.
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Retomando:
Menino: E aí? Vamos tomar uma breja?
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Meu pai com certeza teria aceito o convite, não conseguiria dizer não a um convite tão caloroso, não conseguiria recusar ao anúncio da diversão.
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Passando pelos lugares coincidentes da cidade-pequena de onde venho, encontrei várias vezes meu pai ao acaso, tomando breja com os amigos, com os colegas, com o meu irmão, com os inimigos. Sempre muito sorridente e falante, conversando com todos, pagando cerveja para todos, pagando a rodada, as rodadas, queria a companhia e tinha, porque havia economizado e agora podia comprá-la. Sentia-se bem, mesmo sendo aqueles afagos, um tipo de carinho prostituído.
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Retomando o que importa mais uma vez:
Menino: E aí? Vamos tomar uma breja?
P. Nietzsche: Hoje não, minha garganta está doendo.
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FIM
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Considerações dramatúrgicas:
Tal história como relatada aqui, só fora dessa forma realizada após terem sido notadas as E-vidências. Antes a história era algo chulo do tipo: o Muleque que foi jogar bola, fumou maconha, perdeu metade da aula e não queria voltar pra casa cedo...

1 Comments:

Blogger Unknown said...

Gostei bastante! E me pergunto se isto não possui um alto conteúdo pessoal-não-fictício? Hmm...

3:28 AM  

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